quarta-feira, 28 de março de 2018

RESENHA: Aimó, o caso da menina sem nome


Zildo Gallo


De repente, uma menina encontra-se sozinha num mundo desconhecido, onde não conhece ninguém e ninguém sabe quem ela é. Isso acontece com uma garota nascida na África e levada ao Brasil como escrava. Subitamente ela  acorda num lugar estranho onde moram os orixás e os espíritos dos mortos que esperam a hora de seu renascimento. Ela não lembra o próprio nome nem se lembra de sua família. Por isso ela ganha o nome Aimó, “a menina que ninguém sabe quem é”. Tudo o que ela quer é voltar ao seu mundo de origem, mas para que isso seja possível, ela partirá numa longa jornada pelos tempos mitológicos, guiada por Exu e Ifá, e, com isso, acompanhará de perto muitas aventuras vividas pelas divindades africanas. Dessa forma ela reunirá o conhecimento necessário para fazer uma escolha que lhe permitirá partir para uma nova reencarnação.
Este é o enredo de "Aimó: uma viagem pelo mundo dos orixás", de Reginaldo Prandi, onde o autor conduz o leitor a uma agradável introdução sobre a rica cultura dos orixás, repleta de mitos que mostram as virtudes e os vícios presentes nas divindades africanas, que espelham os vícios e virtudes de todos nós seres humanos.
Exu e Ifá, filhos de Olorum, senhor supremo do mundo dos orixás, são escalados pelo pai para guiar a menina para que ela escolha uma das aiabás (orixás femininos) que a aceite como mãe adotiva, condição necessária ao seu desejado retorno ao mundo dos "vivos". Assim, o belo livro "Aimó" conta  histórias ancestrais, muito antigas, trazidas da África pelos escravos e preservadas no Brasil pela nossa riquíssima tradição oral.
Trata-se de uma obra de fácil leitura e, eu diria, indispensável para aqueles que desejam iniciar-se na compreensão desse universo mágico das religiões originárias do continente africano. É uma obra importante para o momento histórico vivido pelo Brasil, em que grassam muitas formas de preconceitos em relação à cultura dos brasileiros afrodescendentes. O livro de Reginaldo Prandi vem para afirmar a importância de se criar no país uma união na diversidade, com respeito às diferenças; a imensa diversidade cultural é que torna a cultura nacional bela e rica.
           
PRANDI, Reginaldo. Aimó: uma viagem pelo mundo dos orixás. São Paulo: Seguinte, 2017.

REGINALDO PRANDI, paulista de Potirendaba, é professor de sociologia na USP e autor de mais de trinta livros de sociologia, mitologia, literatura infantil e outras obras de ficção. Recebeu da SBPC, do MinC e do CNPQ o prêmio Érico Vannucci Mendes por seu trabalho de preservação da memória cultural do Brasil.

terça-feira, 27 de março de 2018

IFÁ


Zildo Gallo

https://br.pinterest.com/pin/558657528749304274/?lp=true

Ifá jogou seus búzios
e as conchinhas me disseram:
seu destino é olhar o mundo
e registrar suas belezas
e também suas feiuras.
Entendi que meu destino
é rir as alegrias de todos
e de todos as tristezas chorar;
não aprendi como apartar-me
do mundo e escrevê-lo separado
do meu coração humano.
Assim, até acho que virei poeta.
Ifá jogou seus búzios
e o meu destino vai andando assim...
indo ao seu rumo destinado.


domingo, 25 de março de 2018

Haicais de 4 (quatro) – ciclo de sangue

Zildo Gallo



1
Vermelho sangue
Tinge o céu poente
Dorme a vida
2
Vermelho sangue
Tinge o céu nascente
Vidas despertas
3
Ao meio dia
Passarinhos sob a luz
A vida canta
4
Sangue vermelho
No fim de cada tarde
Ciclos de vida

https://pixabay.com/pt/amanhecer-natureza-sol-nascente-542126/


sexta-feira, 23 de março de 2018

RESENHA: Consumido de Barber, um retrato assustador.


Zildo Gallo


         Benjamim R. Barber não foi o primeiro cientista social a notar que os consumidores são mais atraídos pela imagem criada do que pela real função do produto que ele compra. Contudo, além de ele considerar benéfica e necessária a diminuição no consumo, em larga escala supérfluo, ele acaba indo muito mais além, culpando o hiperconsumo da sociedade afluente pela crise econômica atual.
         No seu livro "Consumido: Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos", escrito em 2007, o autor mostra como o etos infantilista, criado e desenvolvido pelo mercado de bens consumo contemporâneo, priva a sociedade de cidadãos responsáveis e autônomos e substitui bens antes públicos por mercadorias produzidas pelo setor privado.
         Barber considera que o consumismo é uma forma tardia do capitalismo que, nos seu início, surgiu como um sistema produtor de bens úteis à população, democratizando o seu acesso para amplas parcelas dos habitantes de todo mundo, por conta da crescente produtividade que caracteriza o sistema industrial.
         Ele também avalia que a desigualdade na repartição da riqueza global separou a Terra em dois tipos de consumidores potenciais: os pobres dos países em desenvolvimento, que têm muitas necessidades e poucos recursos para satisfazê-las, e os ricos dos países desenvolvidos, que têm muito poder de compra e que já não têm no que gastar e nem mesmo porque gastar. Com convicção ele afirma que o capitalismo na sua faze atual não se baseia na produção de mercadorias, mas na produção de mais e mais necessidades para serem atendidas.
         Uma grave constatação: se os pobres não podem enriquecer para se tornarem consumidores, os afluentes, tanto dos países desenvolvidos como dos em desenvolvimento, precisam ser atraídos às compras. Então, induzi-los a que ainda permaneçam infantis na idade adulta pode esticar por mais tempo o ímpeto consumista dos cidadãos. Em suma: o capitalismo atual precisa de cidadãos adultos infantilizados.
         A gravidade de tal situação é que a tradicional sociedade democrática está sendo colonizada por uma imposição generalizada do mercado, sob o comando do marketing das grandes corporações. O espaço público está sendo privatizado em todo o planeta e caminha a largos passos um processo de homogeneização cultural que visa expandir o mercado aos bens produzidos pelas corporações.
         O livro Consumido, do professor Barber, diante do quadro grave de crises (meio ambiente e economia) que atingem todos e em todos os lugares do mundo, trata-se de leitura obrigatória para todos aqueles que estão sinceramente preocupados com o destino da humanidade e do Planeta Terra.

BARBER, Benjamin R. Consumido: Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Rio de Janeiro: Record, 2009.

Benjamim R. Barber é um teórico político renomado. É autor do best seller Jihad x McMundo, também publicado no Brasil pela Editora Record.


quinta-feira, 15 de março de 2018

ANÉIS DE SATURNO


Zildo Gallo

http://ultimas-curiosidades.blogspot.com.br/2016/11/aneis-de-saturno-sao-uma-incognita.html

Quando o inverno acabar
e a primavera chegar
já estarei no outono
pois o verão evaporou-se
e nem o percebi
exceto seus calores
o mundo já não anda em ciclos
explicação que me foi dada
quando o tempo correndo
passou pelo meu despercebimento
no inverno tive frios
no verão suei calores
na primavera ipês floriram
no outono falei ao vento
e o vento sempre vem e sempre vai
aqui na urbe a natureza circular
não tem seu sentido arredondado
o tempo é um continuum
que continua
continua...
continua...
continua...
enquanto Saturno
o implacável senhor do tempo
embuçado no céu longínquo
gira nos seus anéis
o meu destino errante.

quinta-feira, 8 de março de 2018

PAX ROMANO-AMERICANA


Zildo Gallo

http://media.economist.com/images/images-magazine/2010/15/MA/201015MAP502.jpg

O mundo não está para menores
Nem à maioria dos maiores
O mundo está para bem poucos
Muito menos para os loucos
Que nos seus desvarios delirantes
Desejam mudá-lo o quanto antes
Torná-lo dos sonhadores
E não só dos sequestradores
De sonhos, esperanças e belezas
Não são delírios de grandezas
Que nada... que nada... que nada...
Apenas sonhos de boa morada
Boa comida, liberdade e paz
Muita paz... muita paz...
Não é a pax romana
Nem é a pax americana
Nunca será a paz da armas
Das armas não sobrevém a calma
Das armas resta o medo n'alma
E o medo inibe os sonhos
Os sonhos das crianças
E dos adultos as esperanças
As airosas esperanças...

quarta-feira, 7 de março de 2018

O DIA DAS MULHERES E DO SAGRADO FEMININO

Zildo Gallo


Amanhã, dia 8 de março de 2018, comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Trata-se de um dia de homenagem à dimensão feminina do ser humano e também de uma efeméride que deve ser consagrada à mais profunda reflexão. Há muito para refletir, pois o estado da real condição das mulheres no nosso planeta, que carrega o nome de uma deusa, a deusa Terra (Gaia para os gregos e Terra para os latinos, a deusa que deu a luz a todos os deuses, deusas e à vida que se esparramou pelas águas, terra e ar, conforme ensina a mitologia greco-romana), não é nenhuma maravilha, mesmo...

A situação das mulheres já foi muito pior, mas ainda existem muitas situações de descabida inferioridade e de inaceitável violência. O patriarcado feriu, conspurcou e acabou rompendo a sacralidade feminina e ela precisa ser restabelecida. Trata-se de uma tarefa para toda a humanidade, em todos os cantos do mundo, pois o patriarcado precisa ser superado para que se restabeleça a igualdade primitiva que se perdeu com o avanço da civilização, que se dá após o fim do neolítico, com o surgimento das cidades.

A subjugação das mulheres e da energia feminina pelos homens é o verdadeiro pecado original da civilização, mas os homens, com destaque para o Ocidente, por mais incrível que pareça, mais particularmente após a expansão do judaico-cristianismo, conseguiram imputá-lo às mulheres; lembram-se do mito de Adão e Eva? Há que se pedir perdão a Eva e a todas as suas filhas. Assim, reproduzo aqui o artigo que publiquei em 2016 por considerá-lo muito claro e oportuno, com o fito de colocar mais uma pedra no edifício do arrependimento, que se transformará, quando enfim concluído, no monumento do verdadeiro perdão. Só depois disso a humanidade rumará no sentido da sua definitiva libertação, da sua transcendência. Ao artigo!




O Dia Internacional da Mulher e a necessidade de resgatar os valores femininos

Na sociedade estratificada do mundo civilizado, onde existem os muito ricos e os muito pobres, encontramos também vários outros tipos de estratificação, onde se repete a dicotomia entre "os de cima" e os "de baixo", que acaba dividindo os grupos sociais entre "incluídos" e "excluídos". Os de alta renda estão em cima e os de baixa renda estão em baixo; os brancos (caucasianos) estão em cima e os negros (afrodescendentes) e índios estão em baixo; os heterossexuais estão colocados acima e os homossexuais abaixo e, ainda; os seres humanos do sexo masculino continuam no "andar de cima" e os do sexo feminino no "andar debaixo". Além destas divisões encontramos outras: as ligadas às religiões; às nacionalidades; ao nível de escolaridade etc. Etc. mesmo, pois os seres humanos são mestres em produzir divisões, em criar grupinhos. É muita divisão para uma única humanidade.
A primeira e grande divisão da humanidade é a de caráter biológico, entre o sexo masculino e o sexo feminino. Trata-se de uma divisão natural, diferente das outras citadas acima que têm origens socioculturais. A bipolaridade que encontramos no universo material, que se expressa, inclusive, no nível atômico, com a divisão entre prótons (com carga positiva) e elétrons (com carga negativa), é encontrada na biologia, com a divisão entre macho e fêmea. Sem a combinação entre prótons e elétrons, que são antagônicos e também complementares não haveria a matéria como a conhecemos e, muito menos, o universo com as suas galáxias e seus sistemas solares. Sem a complementaridade entre masculino e feminino, a vida poderia ser composta majoritariamente por vírus, por muitos seres unicelulares e vários tipos de fungos. A vida superior, incluindo aí os seres humanos, não seria possível. Não existe uma hierarquia, neste caso, ambos, masculino e feminino são necessários, o que existe é uma condição de efetiva e necessária igualdade.
Diante do exposto até aqui, afirmo: pensar em superioridade e inferioridade entre os gêneros é, no mínimo, estupidez e, no máximo, alguma expressão impublicável (escolha a expressão, à vontade). Todavia, em relação aos seres humanos uma diferença foi criada; trata-se de uma criação sociocultural, apenas sociocultural. Entretanto, muitos ainda acreditam que, do ponto de vista biológico, os homens nasceram melhor aquinhoados. Muitos, raciocinando no limite inferior das suas capacidades, não enxergando além da sua própria massa corpórea, acreditam que a força física os diferenciam. No mundo de hoje, onde as máquinas há muito tempo substituíram a força física nas tarefas mais pesadas, pensar assim é minimamente ridículo, pois a força bruta, que foi valorizada em outros tempos, hoje significa muito pouco, muito pouco mesmo. É muita ignorância e o nosso planeta ainda está lotado de ignorância, infelizmente...
A partir da introdução um tanto azeda que fiz acima para o meu artigo em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, sigo na construção do mesmo, pretendendo lançar luzes sobre o porquê da brutal inferiorização e violência sofridas pelas mulheres durante milênios da trajetória humana no planeta Terra. É possível entender esta barbaridade, acreditem.
Entre 2011 e 2012, participei de um grupo de estudos sobre ecologia profunda, na UNIARA (Centro Universitário de Araraquara), onde leciono no curso de pós-graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (Mestrado e Doutorado). Por conta das nossas ricas discussões, escrevi um texto para análise do grupo, onde falo sobre as três grandes sombras que acompanham a humanidade desde os primórdios da civilização, três elementos basilares do patriarcado: 1) a exploração do trabalho alheio (escravatura, jornadas abusivas, baixos salários, trabalho infantil, insalubre etc.); 2) a violência contra a mulher, nas suas mais diferentes manifestações (falta de liberdade, violência física, exploração sexual, exploração econômica etc.); 3) a concentração da propriedade e da renda por poucos em detrimento da maioria. Vou tratar aqui, com mais detalhe, o detalhe possível num artigo relativamente pequeno, da sombra que ainda paira sobre o mundo feminino.
Na pré-história (paleolítico e neolítico), os homens modernos (homo sapiens) tinham como preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. O uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma convivência mais tranquila com o meio e a introdução da agricultura sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais pareciam igualitárias, pois, nas tribos, ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e nem a dominação das mulheres pelos homens. Nos primórdios das cidades, com o enfraquecimento das sociedades tribais, a situação se modificou. Surgiu o trabalho escravo, o patriarcado e o casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis femininos, e, aos poucos, firmou-se a propriedade privada, os fragmentos de territórios apropriados e dominados pelos patriarcas. Instalou-se a partir daí a trindade trevosa que comanda a humanidade desde então.
Apesar de tudo, precisamos ser indulgentes com a humanidade: numa situação indefesa, com conhecimentos limitados sobre o seu entorno, é compreensível o surgimento da tríade obscura. Para sobreviver num ambiente hostil, os humanos precisaram arrojar-se, tornar-se fortes e agressivos. A batalha pela sobrevivência acontecia todos os dias. Os humanos tornaram-se hábeis caçadores e desenvolveram armas úteis tanto para a caça como para a defesa. Tiveram que aprender a conviver com os fenômenos naturais agressivos e sobrepujá-los. Com o fortalecimento da família monogâmica e patriarcal, nos primórdios da civilização, a questão central da luta humana passou a ser a sobrevivência das famílias nas cidades. Nas tribos importava mais acentuadamente a sobrevivência do coletivo dos seus membros, a sobrevivência da própria tribo. A civilização acabou estreitando a ideia de coletividade, entendendo-a como um conjunto de famílias, o que se trata de uma redução simplista, que serviu para justificar a exploração do homem pelo homem. O teólogo e filósofo Leonardo Boff denominou esse primeiro momento da trajetória da humanidade de paradigma conquista.
Contudo, com o passar do tempo, a humanidade aumentou a sua capacidade de sobreviver a partir da expansão crescente do conhecimento sobre a natureza e dos avanços da tecnologia. Ela tinha tudo para deixar de lado essa competição insana, mas acabou entrando num círculo vicioso, onde a oposição entre proprietários e não proprietários, entre homens e mulheres e entre as diversas nacionalidades tornou-se uma constante. A guerra, violenta ou subliminar, tornou-se a forma de ser da civilização, embalada na ideia de que nem tudo dava para todos, embalada no medo permanente de uma possível escassez. As mulheres foram as que mais perderam nessa trajetória, pois elas praticamente se transformaram em propriedade dos homens, alienando a sua liberdade e a sua criatividade. A partir da civilização o mundo tornou-se essencialmente masculino e isso se cristalizou, transformou-se num tipo de vício, um vício difícil de ser largado.
Hoje, no século XXI, a inferiorização da mulher ainda é muito presente e, em muitos países, ela chega à beira da irracionalidade. No oriente ela é mais visível e mais absoluta, abrangendo amplos aspectos da vida cotidiana. No ocidente ela é mais sutil e se encontra mais claramente no mundo do trabalho. A exploração do trabalho feminino é maior e a sua remuneração menor é a ponta do iceberg desta questão. Outra forma sutil de exploração da mulher no ocidente encontra-se no campo da sexualidade, onde o corpo feminino transformou-se em valiosa mercadoria. Só um exemplo, tem muitos: as revistas eróticas são um grande negócio e as suas modelos são regiamente remuneradas, o inverso do que acontece nas fábricas e nas fazendas. O mercado produziu uma grande façanha: transformou a liberdade sexual conquistada com muita luta a partir dos anos 60 do século passado, em mercadoria com alto valor agregado. A condição feminina e a sexualidade humana continuam, ainda hoje, envoltas por uma grande sombra.
Hoje a humanidade precisa e tem plenas condições de superar o paradigma conquista, em função das imensas conquistas no campo da ciência e da produtividade da economia. Entendo também que a necessidade de mudança paradigmática passa com maior ênfase pela questão de gênero e que esta questão é, em última instância, espiritual, pois se trata de uma mudança profunda na forma de ser dos indivíduos e da sociedade. Acredito mesmo que a centralidade das questões contemporâneas está nas disputas, que remontam a ancestralidade do homo sapiens, entre os sexos masculino e feminino, no sentido de que prevalece até os dias de hoje uma compreensão majoritariamente masculina da realidade.
Para facilitar a compreensão do que quero dizer, lanço mão da milenar filosofia chinesa. Os chineses enxergam o universo como uma relação, uma relação de duas forças antípodas e, ao mesmo tempo, complementares. Basta observarmos a natureza, esta é a sabedoria chinesa: para que exista o frio tem que haver o quente, para o molhado há o seco, para o mole tem o duro, para o claro tem o escuro, para o triste tem o alegre, para o bom tem o ruim etc. De forma bem simples, eles dividem tudo e todos os fenômenos em dois grandes blocos: YIN e YANG (veja a figura abaixo).


Na figura são visíveis dois peixinhos do mesmo tamanho, harmoniosamente encostados um no outro. Um é branco e representa o aspecto solar masculino e o outro é preto e representa o aspecto lunar feminino. Um detalhe importante: O peixe branco tem um olho preto e o preto tem um olho branco, significando que o masculino também possui elementos do feminino e que o feminino também contém elementos do masculino, sugerindo uma complementaridade perfeita, apesar de todo o antagonismo. As características de Yin e Yang são opostas e complementares, como se pode ver no quadro abaixo.

UNIVERSO BIPOLAR
YIN
YANG
FEMININO
MASCULINO
CONTRÁTIL
EXPANSIVO
CONSERVACIONISTA
EXIGENTE
RECEPTIVO
AGRESSIVO
COOPERATIVO
COMPETITIVO
INTUITIVO
RACIONAL
SINTÉTICO
ANALÍTICO

Pelo quadro vemos que Yin, que representa o feminino, tem atributos opostos a Yang, que representa o masculino. Na sua conturbada trajetória, com destaque para os tempos pretéritos, a humanidade lançou mão com mais vigor dos atributos masculinos por conta do paradigma conquista, focando mais a necessidade de sobrevivência, e acabou obliterando os femininos, inclusive com a própria inferiorização da mulher, guardiã das energias Yin. A humanidade tornou-se majoritariamente Yang: agressiva, competitiva, racional, expansionista etc.
Nesta altura da história da humanidade, com tranquilidade, podemos concluir que, em última instância, as crises econômica, social e ambiental, vividas em todo o mundo, decorrem do desbalanceamento das duas energias primordiais, com a balança pendendo para o lado Yang, o que reforçou e ainda reforça o paradigma conquista. A sobrevivência da humanidade enquanto tal, depende da transição para um novo paradigma, o paradigma do cuidado. É preciso diminuir a competição e aumentar a cooperação, é preciso diminuir a agressão e aumentar a aceitação e assim por diante. E, o que é de muita importância, neste mundo conduzido pela ciência: é preciso dar vazão às outras formas de percepção da realidade, possibilitadas pela intuição, que é a contraparte feminina da racionalidade masculina. O começo da caminhada para o paradigma do cuidado é o resgate da dignidade feminina, uma tarefa ainda árdua para a humanidade, todavia imprescindível.
Caminhar rumo ao paradigma do cuidado significa que a humanidade precisa tornar-se mais afetiva e compassiva, dois atributos femininos.  E, por falar em homens mais compassivos: a compaixão é a essência  mais profunda do ser humano e ela se apresenta menos no campo material da existência e muito mais no campo do espírito, é um sair de si, um abandono positivo de si e um aproximar-se do outro, numa alteridade positiva, enxergando no outro “um igual” e ao mesmo tempo, “um diferente” e, sobretudo, aceitando a sua diferença, vendo no outro a si mesmo. Desaparece a separação e, extrapolando e extremando a dimensão da alteridade, quem é o outro? O outro são todos os seres que navegam na nave-mãe Terra. A partir daí, o homem abandona o seu papel de conquistador, de guerreiro, e assume o seu papel de cuidador, de jardineiro dos jardins da criação.
Para terminar, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, ofereço o poema de Victor Hugo, onde ele capta as essências masculina e feminina. Lembrando, sempre é bom lembrar: a mulher também guarda em sua alma a essência masculina e o homem a feminina. Somos seres muito complexos e esta é a beleza.

O Homem e a Mulher

O homem é a mais elevada das criaturas;
A mulher é o mais sublime dos ideais.
O homem é o cérebro;
A mulher é o coração.
O cérebro fabrica a luz;
O coração, o AMOR.
A luz fecunda, o amor ressuscita.
O homem é forte pela razão;
A mulher é invencível pelas lágrimas.
A razão convence, as lágrimas comovem.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher, de todos os martírios.
O heroísmo enobrece, o martírio sublima.
O homem é um código;
A mulher é um evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é um templo; a mulher é o sacrário.
Ante o templo nos descobrimos;
Ante o sacrário nos ajoelhamos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter, no crânio, uma larva;
Sonhar é ter, na fronte, uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher é um lago.
O oceano tem a pérola que adorna;
O lago, a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa;
A mulher é o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço;
Cantar é conquistar a alma.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra;
A mulher, onde começa o céu.


Viva as mulheres! Viva os homens! Viva a igualdade!

sexta-feira, 2 de março de 2018

PÉ RAPADO


Zildo Gallo

https://br.blastingnews.com/curiosidades/2017/07/como-surgiu-o-termo-pe-rapado-001887715.html


Raspo meus sapatos embarreados
No raspador da entrada da capela.
Não tenho cavalo nem charrete
E caminho a pé no chão molhado,
Mas na casa do bom Senhor Jesus
Eu também recebo a sua luz
E ela destaca os meus trajes pobres
Frente às finas roupas dos nobres.
Nada disso tem muita importância,
Sou um igual na casa do Senhor
E todos os anjos dizem amém.

TEMPO E ROUPA SUJA