sexta-feira, 13 de maio de 2016

OS ARCANOS MAIORES DO TARÔ EM POEMAS: A IMPERATRIZ

Zildo Gallo

Continuando o proposto em 26 de abril de 2016, um dia outonal nublado, eu publico hoje, 13 de maio de 2016, num dia frio de outono, um poema sobre a minha percepção da carta número 3 (três) do Tarô de Marselha, a Imperatriz. Relembrando, desde 1990 eu estudo as mais diferentes versões do Tarô, desde a mais antiga, Tarô de Marselha, até as mais contemporâneas, como o Tarô dos Orixás, por exemplo. A Imperatriz é a terceira carta da jornada arquetípica do Tarô e, após ela, continuarei publicando um poema por semana e, ao cabo de 22 semanas, que teve início em abril de 2016, terei passado uma visão completa em forma de poesia sobre todos os arcanos maiores.


A IMPERATRIZ

Senhora do mundo material,
Senhora da prosperidade,
Da abundância
E do alimento.
Senhora de tudo que nasce e cresce.
Só a Senhora,
No seu recolhimento alquímico,
Constrói a vida,
Partindo da minúscula semente,
E, ao término da sua tarefa,
Lança-a à luz do sol,
Como um arqueiro que atira flechas
No vazio do espaço,
Esperando que ele seja preenchido.

Grande Mãe,
A Grande Mãe
Dos nossos remotos ancestrais,
Que souberam reconhecê-la
Em cada ser vivente
Neste solo por onde caminhamos,
Este solo que é seu colo
Que nos acolhe,
Sem que disso demos conta,
Hoje,
Como filhos ingratos que nos tornamos.

Como mãe dos deuses e de todos os seres,
O seu desejo mais profundo
E verdadeiro
É que todos tenham em abundância
Tudo aquilo que é de verdade necessário,
O verdadeiramente necessário
À Caminhada de cada um
Neste planeta que leva seu nome:
Terra, Gaia, Gayatri...

Como toda mãe,
A Senhora sofre ante o sofrimento
E ante os tropeços enganosos de cada filho seu,
Mas sabe que eles foram atirados
Como flechas ao mundo,
Ao livre arbítrio,
Para que façam o seu próprio caminho
Ao caminhar.
Muitas delas pousam em terrenos hostis
E acabam por se perder
E seu desejo é que elas encontrem
Um bom caminho
Ao caminhar.

Seus filhos já não lhe reconhecem
E ferem o seu colo
Acolhedor
E, não satisfeitos,
Escavam as feridas que sangram
Como lágrimas escorrendo,
Mas nem mesmo assim os abandona,
Pois, no seu derradeiro momento,
Acolhe cada um,
Em seu substrato material,
No seu generoso colo,
No seu útero cósmico.


COMPLEMENTO
Em complemento ao poema, reproduzo aqui o artigo "Saber Cuidar: a Essência do Humano", que publiquei em 8 de dezembro de 2014, neste blog, onde aparece a mãe Terra (Gaia) na fábula-mito do Cuidado, que trata da criação do ser humano e da sua profunda ligação com a Grande Mãe que, no Tarô de Marselha, eu a reconheço na carta da Imperatriz.

SABER CUIDAR: A ESSÊNCIA DO HUMANO

Zildo Gallo

Cuidado é o tema principal do livro Saber Cuidar: Ética do Humano – Compaixão pela Terra, de Leonardo Boff, onde ele resgata a fábula-mito do Cuidado ou Fábula de Higino. Caio Júlio Higino, em latim Gaius Julius Higinus, foi um escritor da Roma Antiga (primeiro século a.C.). Sua principal obra chama-se Fábulas ou Genealogias. Trata-se da recompilação de 300 lendas, histórias e mitos da tradição greco-latina. Eis a fábula:
Certa vez, depois de atravessar um rio, o deus Cuidado viu uma porção de barro. Então, teve uma inspiração. Tomou um pouco de barro e deu-lhe uma forma. Enquanto contemplava a sua obra, apareceu Júpiter, o senhor de todos os deuses. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele, o que Júpiter fez com satisfação. Todavia, quando Cuidado quis dar um nome a sua  criatura, Júpiter o proibiu, exigindo que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e  Cuidado discutiam, surgiu a deusa Terra. Ela quis também dar o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, que era material do seu próprio corpo, provocando com isso uma discussão generalizada. Como não chegavam a um acordo, chamaram Saturno para que funcionasse como árbitro da questão. Procurando ser justo, Saturno tomou a sua decisão: "Você, Júpiter, deu-lhe o espírito e, por isso, recebê-lo-á de volta quando a criatura morrer. Você, Terra, deu-lhe o corpo e recebê-lo-á de volta quando da sua morte. Cuidado, como você foi quem moldou tal criatura, ela deverá ficar sob seus cuidados enquanto viver. E, já que vocês não chegam a um acordo sobre o seu nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.
O ser humano nasceu, assim como todos os seres, do corpo da Terra. Conforme a lenda, nasceu de uma terra fértil, do húmus da terra, que foi trabalhada com esmero e muito cuidado pelo deus Cuidado. A palavra humilde também deriva de húmus e, desta forma, ser humilde significaria reconhecer-se filho da Terra, da sua fertilidade, assim como todos as demais criaturas que também são filhas da mesma mãe, que também se formaram a partir do mesmo corpo, do mesmo barro.
A partir da fábula-mito do cuidado, podemos elaborar uma linha de raciocínio que pode levar-nos a entender o propósito maior da existência, o do cuidado necessário com o ser humano, que deve refletir-se no cuidado com a própria Terra, que é ao mesmo tempo nossa mãe e nossa casa, cuja maternidade e abrigo dividimos com todos os seres vivos, nossos irmãos. Reconhecer-se filho da mesma mãe significa compreender e respeitar a teia da vida que foi sendo  construída lentamente, durante milhões e milhões de anos no nosso planeta.
O mito do cuidado é mais que pertinente nos dias de hoje, pois faz com que nos relembremos da nossa íntima ligação com a Terra, o nosso planeta, instando-nos a que humildemente nos religuemos a ela, pois, neste momento, ela também necessita dos nossos cuidados. Trata-se, metaforicamente, da necessidade de uma volta para casa. Ele também pode servir como uma metáfora de caráter educativo, pois serve para despertar naquele que lê uma reflexão sobre a necessidade de cuidar dos seres humanos que sofrem e também de transformar o cuidado recebido pelo deus Cuidado, sob as ordens de Saturno, no cuidado com todos os outros seres viventes, com a própria Terra, por extensão.
O cuidado surge quando a situação de existir de alguém tem importância para outro alguém também existente, trata-se de uma relação, de um conjunto de relações. Alguém sai de si mesmo e conecta-se a outros, que, reciprocamente, também fazem o mesmo movimento. Por outro lado, a palavra cuidado significa preocupação, inquietação, sentido de responsabilidade, pois aquele que cuida sente-se envolvido e afetivamente ligado ao outro. Então, o cuidado é algo que se liga àquilo que é a essência primitiva, a essência primeira, do ser humano, que não é a razão, mas o afeto. O afeto antecede a razão; ele se encontra naquela situação de proteção que cada ser humano recebe nos primeiros dias da sua vida, naqueles momentos em que está totalmente dependente e indefeso em relação ao mundo que o cerca, naquele momento em que está totalmente dependente e indefeso em relação ao outro.
O cuidado é o modo de ser do humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano e ele é cuidado e se cuida em grupo, sendo dessa maneira um ser social. Caso não receba cuidados, desde o nascimento até a morte, ele se desestrutura, definha e morre. Ele recebe cuidados para aprender a cuidar. Ele deve aprender a cuidar de si mesmo depois da sua infância, que é bem longa se comparada com a de outros animais, para em seguida aprender a cuidar dos outros humanos e dos demais seres vivos do planeta, pois tudo que vive precisa de cuidados para viver. Esta é a regra do jogo neste mundo
Conforme a fábula de Higino, o cuidado é fundamental para a existência e, neste sentido, antecede o espírito soprado por Júpiter e o corpo esculpido por Cuidado com o húmus fornecido pela deusa Terra. O Cuidado é a essência divina, é um a priori, ele pré-existe. É aquele Eros, o puro amor, aquele deus grego que já existia na noite dos tempos, antes mesmo da criação do universo.
Sem cuidados a vida e os humanos não existiriam. Então, há que se ter cuidado com tudo. É preciso ter compaixão com todos os seres que sofrem, humanos e não humanos,  obedecendo mais o coração, seguindo mais a lógica da cordialidade do que a da competição e do uso utilitário das coisas. Há que se ter cuidado com a Terra e com a sociedade, particularmente com os excluídos, com todos, enfim.
Neste momento, em desespero, tanto a Terra quanto a humanidade clamam por cuidados essenciais. A degradação ambiental, a pobreza de milhões de pessoas e as violências de todos os tipos precisam ser enfrentadas. Enfim, a grande crise pela qual passa o planeta Terra, só pode ser enfrentada com mais cuidado, o que resulta num clamor por um novo ordenamento ético para a humanidade e para o nosso planeta.
Contudo, as crises criam novas oportunidades e, neste momento, elas possibilitam mergulhos na instância onde, segundo Leonardo Boff (2003), os valores são continuamente forma­dos. Segundo ele, a nova ética planetária “deve brotar da base última da existência humana”. Ela não está na razão, como deseja o Ocidente. A razão não é a essência da existência e por isso não pode explicar e nem abranger tudo. A essên­cia do existir está em “algo mais elementar e ancestral: a afetividade”. Então, contrariando Descartes, que é o pilar do saber ocidental, a experiência basilar não é o seu “penso, logo existo”, mas, segundo Boff, é o “sinto, logo existo”.
Assim, para Boff (2003), na raiz de todas as coisas não está a razão (logos), mas a paixão (pathos). “Pela paixão captamos o valor das coisas (...) Só quando nos apaixonamos vivemos valores. E é por valores que nos move­mos e somos”. Neste ponto, Boff observa o surgimento de uma dramática dialética entre razão e paixão, já que ele em absoluto não menospreza o papel da razão:
Se a razão reprimir a paixão, triunfa a rigidez, a tirania da ordem e a ética uti­litária. Se a paixão dispensar a razão, vigora o delírio das pulsões e a ética hedo­nista, do puro gozo das coisas. Mas, se vigorar a justa medida, e a paixão se servir da razão para um autodesenvolvimento regrado, então emergem as duas forças que sustentam uma ética promissora: a ternura e o vigor.
Leonardo Boff (2003) considera que dessas premissas pode surgir uma ética que será ca­paz de incluir toda a humanidade. Essa nova ética deverá estruturar-se em torno de valo­res fundamentais ligados à vida, ao seu cuidado, ao fazer humano, às relações cooperati­vas e à cultura da não violência e da paz. “É um ethos que ama, que cuida, se responsabi­liza, se solidariza e se compadece”.

Referências
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca os fundamentos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
______. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes 1999.


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