segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O MENINO, SEU PÉ DIREITO E A BONECA RUSSA

Zildo Gallo
Sempre tive boa memória e ela recua muito no tempo, aos primórdios da minha infância. Em 1958, nem tinha completado três anos de idade, e tinha me mudado com minha família da zona rural para a cidade de Itápolis (SP). Tenho lembranças de que não gostei disso, pois guardo algumas boas lembranças do sítio, em particular do Catolino. No meu português de dois anos era assim que me referia ao meu cachorro (catolino = cachorrinho), que era um bonito perdigueiro, bem maior que eu e que sempre estava em todos os lugares onde por ventura me encontrava. Catolino também mudou-se conosco para a cidade e isso foi bom, tenho um longínquo sentimento de segurança com a memória da sua presença.


Assim que nos estabelecemos na nova moradia que ficava nos fundos de uma grande mercearia, logo depois casa da família do comerciante que com ela estava conjugada, a minha sorte mudou para pior. Era um lugar agradável, que tinha um grande quintal e uma frondosa mangueira, mas coisas ruins podem acontecer em lugares agradáveis. De imediato, apenas alguns dias depois da nossa chegada, fui informado que roubaram o Catolino, que ele tinha sido levado por um sitiante em cima da carroceria de um trator, foi o que me disseram... A lembrança da minha tristeza daquele dia distante ainda hoje dá sinais, como uma imagem fantasmagórica.
Havia um menino, um pouco mais velho que eu, que vivia me agredindo. Não tenho lembranças de ter sido agredido antes, muito menos com tanta frequência. Parece-me que o garoto era neto do dono do armazém. A história tinha lá suas complicações já que a minha mãe fazia alguns serviços domésticos para a sua família. Vem-me a memória que, além de apanhar, eu tinha que ficar quieto. Às vezes, o que está ruim pode piorar e assim aconteceu.
Naquele ano, aconteceu uma eleição para governador do Estado de São Paulo. Os principais contendores eram Jânio Quadros e Ademar de Barros. Parece que meu pai votaria em Ademar, não tenho certeza. Um dia, quando eu me encontrava  próximo do portão que dava para a rua, alguém me deu um folheto com uma foto grande do candidato Ademar. Saí correndo em direção à minha casa para mostrá-lo à minha mãe. Corria sem olhar para o caminho com o panfleto levantado pelas duas mãos à frente do meu rosto e não vi o perigo logo adiante. Havia uma lata com água sobre uma fogueira acesa, cercada por tijolos onde a lata se sustentava, nela minha mãe fervia as roupas encardidas por meu pai no seu trabalho na terra. Apressado e distraído, enfiei o meu pé direito na lata com água fervente.


A queimadura foi instantânea e a dor incalculável. Fui levado às pressas ao médico, que me untou o pé com pomada e, em seguida, voltamos para casa. Mas com o passar dos dias o ferimento infeccionou e, dessa vez, fui levado a hospital da cidade. Ali a situação ficou macabra. Acho que a anestesia  não pegou direito e, a cada pedaço de pele que o médico arrancava, eu urrava. Do alto dos meus sessenta anos ainda ouço aqueles gritos. A recuperação foi bem lenta e, após a cura, uma mancha escura instalou-se sobre o meu pé e ali permaneceu durante muitos anos da minha vida, por décadas e, aos poucos foi diminuindo. Só agora me dei conta de que ela quase desapareceu. Acho que por isso ficou fácil escrever sobre esse episódio doloroso. Ah! ia me esquecendo: Jânio Quadros foi eleito governador e o derrotado Ademar de Barros reassumiu a Prefeitura de São Paulo, onde era o mandatário.
As memórias que carrego há muitíssimos anos daquela casa na cidade de Itápolis não são agradáveis. Ainda bem que as coisas podem mudar. Mudamo-nos para um pequeno sítio que ficava colado ao meio urbano de Itápolis. Uma prima do meu pai morava lá e, com o seu marido, cuidava da propriedade para uma família muito rica da cidade de São Paulo. No sítio eram criadas vacas leiteiras e porcos e havia um grande pomar com muitas árvores frutíferas, com destaque para as mangueiras. Meu pai foi contratado para cuidar dos porcos. Lá a história foi outra.
Fiquei muito amigo da filha menor do casal, que devia ter a mesma idade que a minha. Passávamos muito tempo juntos, brincando sob a sombra das mangueiras. Lembro-me que, numa das vezes que os proprietários paulistanos vieram visitar a propriedade, no amplo gramado que havia diante da casa da prima do meu pai foi esticado um pano branco entre dois paus, formando uma tela e nela foram projetados filmes. A família paulistana gostava de cinema e dividia esse gosto com os seus empregados. Pela primeira vez na minha vida vi um filme e lembro-me de um desenho animado. Foi um alumbramento...
Todavia, não ficamos muito tempo naquele lugar, pois novos compromissos de trabalho levariam a minha família à cidade de Borborema (SP), só que a família estava maior, pois tinha nascido a minha irmã. A tempo: a prima do meu pai e seu marido tornaram-se meus padrinhos de crisma. Tenho boas lembranças deles.
Acredito que, desses dois episódios que aqui narrei, retirei os meus ensinamentos primeiros. Acho que comecei a compreender que a vida é mesmo assim, com momentos bons e ruins, às vezes muito bons e às vezes muito ruins. Olhando hoje para os idos de 1958 e 1959, observo que aquele menino com o pé direito machucado ainda vive, ele vive dentro de mim com todo seu vigor. Vive, assim como vive o menino que ia para a escola primária no Centro Educacional SESI 101, em Americana (SP), e o adolescente rebelde do final dos anos sessenta e dos anos setenta do século passado. Diante desta curta história, a imagem que me vem é a de uma boneca russa. Ela se constitui de uma série de bonecas, feitas geralmente de madeira, colocadas umas dentro das outras, da maior (exterior) até a menor (a única que não é oca). Assim, o menino do pé direito queimado é a boneca menor e cada boneca, uma após a outra, em sucessivas camadas, tem a memória do seu tamanho, do seu tempo,. Cada camada (cada boneca) é como um capítulo de um livro que pode ser relido aleatoriamente a qualquer momento.



Um comentário:

TEMPO E ROUPA SUJA