quarta-feira, 19 de agosto de 2015

As correntes da ética ambiental - por que conhecê-las?

Zildo Gallo


Como é possível estancar o processo progressivo de destrui­ção da natureza que teve início na Revolução Industrial e que, a partir daí, se aprofundou e continua nos dias de hoje? Não respostas prontas. Conhecer, mesmo sem muitos aprofundamentos, as correntes de pensamento que falam da relação do homem com a natureza pode ajudar muito, principalmente aqueles engajados na luta por uma sociedade sustentável. Neste sentido, sugiro a leitura de Correntes da Ética Ambiental (Pelizzoli, 2002). O livro permite uma atualização sobre a diversidade de visões e posturas que se desenvolveram nas últimas déca­das sobre ética e ecologia. É uma leitura que recomendo; seguem abaixo algumas informações rápidas sobre o conteúdo da obra.
A primeira corrente que Pelizzoli destaca é aquela que se baseia nas ideias liberais que, para ele, produzem uma ética utilitarista, pois valorizam o indivíduo “natural­mente” competitivo e a sua “liberdade” para competir. Para os liberais a concorrência e a competitividade são necessárias ao aprimoramento da economia e da sociedade. Esta forma de ver o comportamento econômico, que sobrevaloriza a competição e minimiza o papel da coope­ração, pode ser perigosa, pois pode conter uma ética neodarwinista implícita, que afirma que o mais forte vence e tem o di­reito “natural” sobre o que conquistou. Trata-se de uma visão ideologizada da luta pela vida que há na natureza.
Em relação às crises sociais e ambientais, os liberais podem adotar posturas reformistas ou conservadoras. Os conservadores preocu­pam-se em demasia com o crescimento da população. Eles têm certa razão, pois o excesso de popu­lação pode agravar situações de pobreza e de destruição da natu­reza; o problema é o excesso de foco na abordagem populacional, que acaba desenvolvendo posturas neomalthusianas, culpando os pobres pela sua situação de pobreza. Todavia, eles se mostram preo­cupados com os desmatamentos em curso nos países do Terceiro Mundo. Acreditam que a tecnologia pode resolver os problemas ecológicos e, assim, defendem as chamadas “tecnologias limpas”. Também acreditam que a pobreza pode ser diminuída com mais crescimento econômico, ações assistenciais e diminuição do crescimento populacional. Enfim, são essencialmente conservadores.
Os liberais reformistas, por seus turno, defendem algumas ações corretivas, tais como: diminuição gradual da emissão de CO2; uso de combustíveis alternativos; certificações ambientais; reciclagem; desenvol­vimento de tecnologias limpas; aperfeiçoamento da legis­lação e do controle ambiental. Apesar des­tes avanços, que são necessários, assim como os conservadores, os liberais refor­mistas não questionam o modelo econômico competitivo e os seus efeitos dano­sos: a elevada concentração da riqueza e a enorme degradação ambiental.
A corrente ecossocialista, antagônica aos liberais (conserva­dores e reformistas) defende a necessidade de aprimorar as críticas ao conjunto de valores predominantes no mundo globalizado. Para Pelizzoli, o movimento por uma nova ética na relação entre o homem e natureza e o desejo por novas relações globais a partir da ecologia levam à compreensão do que vem a ser o ecossocialismo en­quanto uma corrente ambiental. Segundo ele, que faz uma síntese pró­pria, a partir de sua participação no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2001, um ecossocialista defende as seguintes ideias: 1) a sociedade não pode se estruturar às cegas a partir da globalização econômica; 2) há que se repensar os valores e modos de vida que se balizam apenas pelas rela­ções mercantis; 3) os impactos sobre o meio ambiente estão baseados numa noção de progresso oriunda das revoluções Científica e Industrial; 4) a democracia não pode ser só político-eleitoral, mas também econômica e cultu­ral; 5) é preciso questionar firmemente as relações Norte-Sul, as dívidas externas do Terceiro Mundo, a dependência econômica dos países pobres e o sistema finan­ceiro internacional; 6) é preciso questionar a intocabilidade da propriedade privada, do falso livre mer­cado, do lucro como principal motivo da produção e da sobrevalorização do indi­vidualismo; 7) é necessário apoiar as trocas de experiências entre os movimentos sociais espa­lhados pelo mundo; 8) é preciso defender as minorias, os movimentos e as organizações civis contra o racismo e os preconceitos; 9) é necessário lutar contra o patenteamento da vida e a propriedade intelectual privada, particularmente em relação à biodiversidade; 10) é preciso lutar pela reforma agrária e por uma política agrícola agroecológica; 11) é necessário questionar as privatizações no Terceiro Mundo, pois estão envol­vidas em escândalos e têm diminuído o poder dos estados-nações; 12) o novo socialismo deve buscar a real democracia, a participação popular, a descentrali­zação do poder, a solidariedade e o respeito à diferença; 13) é necessário impor regras à atuação do capital internacional, diminuir a má distribuição das riquezas e criar formas de participação social nas empresas e na economia. A sociedade civil organizada é o ator das mudanças necessárias para os ecossocialistas.
Existem muitos pensadores do ambientalismo que têm opiniões convergen­tes. O ponto de partida deles é a crítica ao tipo de civilização construído a partir do desenvolvi­mento econômico baseado na ciência e na indústria. Preocupam-se com os desequilíbrios que ocorrem com os seres humanos e a natureza por conta desse tipo de desenvolvi­mento. Eles buscam uma visão holística, integradora, que reintegre, religue harmoniosamente, os homens com o meio natural. Buscam a estruturação de uma ética holística. Particularmente, eu me afino muito com esses pensadores.
O desenvolvimento da razão científica e instrumental, que é produto destacado da civilização ocidental, distanciou o homem da natureza e facilitou para ele a assunção de uma atitude dominadora em relação a ela. Ele acabou, então, subordi­nando o ambiente natural à sua vontade. O objetivo maior da corrente holística é recuperar a integridade do ser humano, refazendo a sua relação ecossistêmica com o mundo. Pelizzoli informa que as fontes desta corrente são do início do século XX, quando o Ocidente recebeu influências do pensamento oriental. A partir dos anos 50 do século XX, com os movimentos de contracultura, com o cres­cimento da crise ambiental e a ameaça nuclear, esta cor­rente ficou visível. O pensador mais conhecido desta corrente em nível mundial é o físico e ecólogo Fritjof Capra. No Brasil destaca-se o filósofo e teólogo Leo­nardo Boff.
Para Capra, a ecologia abrange um vasto campo: pode ser praticada como disciplina científica, filosofia, política ou como estilo de vida. Enquanto filosofia ela é conhecida como “ecologia profunda”, que se trata de uma escola fundada pelo filósofo norueguês Arne Naess no começo dos anos 70 do século XX. Naess distinguiu a ecologia “rasa” da ecologia “profunda”. A ecologia rasa é antropo­cêntrica, pois coloca o homem fora e acima da natureza, e a ecologia profunda não separa o homem dela.
Capra considera que o arcabouço científico mais adequado para o estudo da ecolo­gia é a teoria dos sistemas vivos. A teoria dos sistemas trata-se de uma nova maneira de ver o mundo e também uma nova forma de pensar, que significa pensar a partir de relações. Esta teoria diz que todos os sistemas vivos compartilham propriedades e princípios organizacionais comuns. Para ele, uma relevante lição da abordagem sistêmica está no fato de se reconhecer a rede como o padrão básico de organização da vida. Os ecossistemas são teias alimentares (redes de organismos); os organismos são redes de células e as células são compostas por redes de moléculas.
O pensamento sistêmico implica, então, numa mudança de enfoque, de ob­jetos para relações. Trata-se de uma ruptura com o modo cartesiano de enxergar o mundo e seus fenômenos. A divisão entre espírito e matéria que aconteceu após o “cogito, ergo sum” (penso, logo sou) de Descartes levou à concepção do universo como um sistema mecânico, que é composto por partes separadas que podem, então, ser analisadas separadamente. A ciência que foi produzida por conta desta separação criou atitudes antiecológicas. A razão ocidental é linear e frag­mentada e os sistemas ecológicos são redes dinâmicas interligadas. Esta racionalidade não consegue captar a complexi­dade dos sistemas vivos e o resultado disto pode ser visto com muita clareza nas tragédias ambientais que se espalham por todo o planeta.
Leonardo Boff, o pensador brasileiro mais ilustre da corrente holística, ao analisar a modernidade científica e técnica, descobre por detrás dela o funciona­mento de uma determinada filosofia: o “realismo materialista”. Ele a chama de realismo porque ela parte do ponto de vista de que as realidades existem indepen­dentes dos observadores. Para ele, não tem objeto sem sujeito e sujeito sem ob­jeto. Também a chama de materialista porque ela pressupõe que a matéria é a única realidade existente. Para Boff, o bem comum não pode ser concebido apenas a par­tir do ho­mem (antropocentrismo). A natureza e os seus ecossistemas também de­vem ser conside­rados. O bem comum deve ser de toda a comunidade terrestre com quem o homem com­partilha o seu destino.
Em tempos recentes, com o crescimento do budismo, tem sido possível ob­servar o surgimento e a expansão de uma forma de pensar as relações do homem com a natureza que se aproxima da corrente holística. O mais conhecido represen­tante desta ética “budista” é o XIV Dalai Lama do Tibet que considera a insatisfação das pessoas, o apego e o desejo como grandes causadores de desintegração social e destruição ecológica. A leitura de sua obra permite concluir que, para ele, a ética fundamenta-se na com­paixão por todos os seres. Talvez, a compaixão seja uma das maiores contribuições éticas do Oriente à humanidade. Dalai Lama sempre defende uma postura humilde e respeitosa em relação aos outros, humanos e não huma­nos, que pode significar o início de grandes mudanças num mundo tão dividido e tão confli­tuoso.
Pelizzoli também considera a importân­cia da grande contribuição do filósofo e ecólogo Hans Jonas. Ele avalia que a sua postura é es­sencialmente ética, pois ele se preocupa com a necessidade de conter a força descontro­lada dos homens. Para ele, Jonas introduz uma nova dimensão para a responsabilidade humana, que vai além da responsabilidade com os semelhantes. Ele fala da responsabilidade com a natureza. A vulnerabilidade da natureza sempre deve ser considerada. Não se trata de defender a natureza como autodefesa para evitar o sofrimento humano; é preciso pensar numa ética que inclua toda a natureza. Jonas mostra enfaticamente que o homo faber, aquele que domina e trans­forma a natureza, tem se colocado acima do homo sapiens, aquele que usa a inteligência e o bom senso. Então, também ele se lança contra a visão cartesiana predominante. A ideia de que a natureza existe por si, que ela é o que pode ser medido, cortado e modificado não pode mais prevalecer.
Quando fala sobre ética, sociedade e natureza a partir da Escola de Frank­furt, Pe­lizzoli afirma que esta corrente filosófica exerce influên­cias sobre os movi­mentos de emancipação, de crítica ao poder e aos sistemas estabe­lecidos, apesar de ela não ter sido trabalhada no ambienta­lismo. Esta escola, que conta com pensadores do porte de Adorno e Horkheimer, desenvolve uma crítica profunda à “sociedade unidimensional tecno­crática”, onde os problemas sociais são abordados pela ótica da racionalidade científica, que caracteriza a filosofia po­sitivista. Então, segundo estes pensadores, a realidade social, que é dinâmica e complexa, submete-se a um método universalizador e unitário, o método científico, Assim, os filósofos frankfurtianos acabam se distanciando do cientificismo materialista, da fé cega na ciência e na técnica como instrumentos da emancipação social.
Ironicamente, o pensamento frankfurtiano expõe à luz os aspectos sombrios da Es­cola Iluminista, importante corrente filosófica do século XVIII, que ressal­tava o poder da razão contra as crenças obscuras do mundo medieval. A Revolução Industrial, como extensão da Revolução Científica, não conseguiu levar a cabo o sonho iluminista de bem-estar a partir do progresso. Pelo contrário, o preço do progresso tem sido alto, tanto para o indivíduo como para a sociedade.
Segundo Pelizzoli, esta corrente filosófica, em termos de ética ambiental, apro­xima-se do pensamento ecossocialista, inclusive quando critica o marxismo ortodoxo, que também professa a mesma fé cega no progresso tecnológico que contaminou todo o mundo moderno e toda a história, que passou a ser a história do progresso, que começa no homem pré-histórico, chega ao “homem cibernético” e vai não se sabe para onde. Para que a história possa livrar-se da bola de neve do progresso é preciso abandonar a ideia de que a história é um conti­nuum e também a concepção de linearidade do progresso da ciência e da tec­nologia.
A ética ambiental pode alimentar-se de muitas fontes. As diversas religiões, por exemplo, podem fornecer subsídios para ela. Mas, para encerrar este assunto, é bom falar das relações entre a ética ambiental e a hermenêutica. No seu livro, Pelizzoli fala da ecoética a partir de uma postura hermenêutica. A palavra her­menêutica vem do grego e significa interpretar. Ela deriva de Hermes, Mercúrio para os romanos, o mensageiro dos deuses, criador da linguagem e da escrita. Para o autor, a hermenêutica implica que, antes de se conseguir uma explicação das coisas, que é a base do procedimento científico atual, deve-se compreendê-las em profundidade. O aprofundamento faz-se sempre neces­sário porque a investigação sobre uma realidade objetiva é passível de subjetividades. Esta compreensão profunda é necessária porque um procedimento meramente carte­siano pode ser restritivo, deixando de fora elementos que não cabem nos li­mites de uma determinada teoria ou nos moldes de um experimento laboratorial. Isto significa, então, que a ecoética hermenêutica apresenta-se mais como postura do que como sistema ou teoria.
O autor fala sobre a necessidade de um resgate hermenêutico de concep­ções da natureza. A palavra natureza tem sua origem no latim (nasci, nascor) e significa nascer, crescer, ser criado. Trata-se de uma visão processual da vida. A palavra grega para a natureza é Physis, que significa a natureza como um todo, incluindo aí os aspectos huma­nos. Phy para o grego significa germinar. A natureza era vista pelos povos da antiguidade como algo em movimento, como algo dinâ­mico. Para Pelizzoli, a nossa ideia de realidade ficou rígida, perdeu a conotação dinâmica. Para os gregos a técnica não estava separada dos processos naturais. Aristó­teles considerava que a arte (techne) imitava (mimesis) a natureza. A Revolução científica, por outro lado, criou uma outra natureza, que virou produto de uma técnica; trata-se de uma visão reducionista. A construção da natureza tornou-se técnica. É preciso recuperar o significado natural da natureza, que diz que a Physis é um processo permanente e contínuo de nascer e morrer. Pelizzoli esclarece como se instalou esta visão reducionista e instrumental A partir de Des­cartes (1596-1650), instalou-se no Ocidente uma visão reducionista e instrumental da natureza: o espírito (res cogitans - coisa pensante) é único e inteiro; as coisas materiais (res extensa - coisa material), ao contrário, são divi­síveis; o espírito (o cogito - penso) é assim dife­rente e separado das coisas; o acesso à natureza dá-se pela de sua divisibilidade; cria-se uma divisão (sujeito - objeto), que funda­menta o progresso científico e tecnológico.
A abordagem hermenêutica sobre a ecologia serve para aprofundar a com­preensão dos problemas causados pelo reducionismo cartesiano. Também serve para desmistificar a ideia de progresso sem fim através da dominação da natureza. A ecoética hermenêutica é mais uma postura do que um sistema ou teoria acabada. Neste sentido, ela chama as diversas correntes da ética ambiental para o diálogo, para a troca de experiências, para a busca de pontos comuns, na tentativa de construir um mundo melhor para todos os seres, indistintamente. E, sendo repetitivo: o diálogo é urgente.

Referências
GALLO, Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia, ecologia e ética. Itu, SP: Ottoni Editora, 2007.
PELIZZOLI, Marcelo L. Correntes da ética ambiental. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002.


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