quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Consumo sustentável ou sociedade sustentável: um debate necessário

Zildo Gallo



Na década de 90 do século XX, aconteceu um deslocamento da questão ambiental para a esfera do consumo, indo além e superando as críticas ao sistema industrial e às populações pobres do "Terceiro Mundo". Não se tratava de ignorar impactos da indústria e da pobreza sobre o meio ambiente, mas de reconhecer o papel do excesso, do consumo abusivo, desnecessário, na questão ambiental, destacando os seus resultados negativos, como a descomunal produção de resíduos e a extração exponencial de matérias primas da natureza, por exemplo. A princípio, as discussões limitaram-se à ideia do "consumo verde", que apenas enfatizava mudanças técnicas nos produtos e serviços e mudanças com­portamentais dos consu­midores individuais. Mas tal abordagem, ainda que necessária, é insuficiente e, assim, logo depois, apareceram propostas que enfatizavam ações coletivas e políticas públicas. Trata-se da estratégia do “consumo sustentável”, que busca se diferenciar da anterior por privilegiar políti­cas públicas e ações individuais e coletivas voltadas para a sustentabilidade socio­ambiental, onde aparece uma pretensão política e transformadora mais definida.
Depois de muitos anos pensando de forma individualista e utilitarista, o mundo, com destaque para a sua porção ocidental, precisa voltar-se ao coletivo, pois as saídas para a grande crise socioambiental na qual o planeta está mergulhado não se resolve a partir do consumidor com suas propaladas autonomia e racionalidade, como acreditam os economistas liberais. Inclusive porque acreditar em autonomia do consumidor em tempos de marketing e propaganda é no mínimo ingenuidade e, talvez, indo além da ingenuidade, má-fé. O mundo precisa de saídas coletivas e o pensamento liberal tem seus limites para pensar além do indivíduo e da sua hipotética liberdade para decidir.
Em termos internacionais o que acabou acontecendo é que se priorizou, no campo do discurso sobre consumo sustentável, uma redução relativa no consumo de determina­das matérias primas e energia, como o petróleo, por exemplo, e não uma mudança nos processos e padrões de produção, distribuição e consumo, dei­xando de dar a atenção necessária aos conflitos gerados pela desigualdade no acesso aos recursos da natureza, tão importante para os países não desenvolvidos, localizados majoritariamente no hemisfé­rio sul. Mudar os padrões e não os níveis de consumo passou a ser o objetivo visto como politicamente adequado nos países desenvolvidos do hemisfério norte. Consome-se a mesma quantidade de combustível, por exemplo, substituindo os derivados de petróleo pelo biocombustível, que é renovável. Todavia, o biocombustível vem da agricultura e a sua produção ocupa terras antes destinadas à produção de alimentos. Os impactos dessa mudança foram devidamente analisados? Foram de alguma forma avaliados? Talvez esta não tenha sido a melhor saída. Há que se verificar.
Dá para se falar de consumo sustentável considerando apenas o indivíduo, tomando-o a partir da sua consciência individual? Resposta: até que dá, mas tem limites, porque, na maioria dos casos, pelo menos nos mais complexos, as saídas não são individuais mas coletivas. Por exemplo, quando se aborda a questão energética, da mobilidade urbana, do tratamento dos resíduos produzidos pelo consumo, da segurança alimentar, da segurança hídrica, da saúde, da educação, da moradia, entre outras, a melhor forma de abordá-las é a partir do coletivo. Na verdade, pouca coisa pode ser abordada única e exclusivamente do ponto de vista individual.
Então, já que o mais correto é a abordagem coletiva, por conta de envolver tanto a sociedade quanto o indivíduo, em vez de se focar no consumo sustentável, melhor seria focar na ideia de sociedade sustentável, pois o consumo é mais um componente das muitas atividades sociais, junto com muitas outras também importantes.
Melhor exemplificar para deixar mais clara a exposição. A Região Metropolitana de São Paulo, onde habita grande parte da população do Estado de São Paulo, tem problemas sérios de mobilidade urbana e de poluição do ar. Existe uma carência de transporte coletivo (rodoviário e ferroviário) e um excesso de veículos automotores que transportam no máximo cinco pessoas (transporte individual). A região enfrenta congestionamentos diários gigantescos e isso, além de estressar os motoristas e provocar perdas econômicas individuais e coletivas consideráveis, também contribui com a poluição do ar e com o aquecimento global (efeito estufa). Não tem saída uma individual. Mesmo que a frota de veículos individuais adotasse exclusivamente o etanol como combustível que, por sua renovabilidade, não contribui com o efeito estufa, restaria ainda insolúvel a questão do congestionamento. A saída que resolve as duas questões é o investimento em transporte coletivo, é uma saída coletiva. Vários outros exemplos poderiam ser dados, tomando outros aspectos da vida em sociedade, mas este já é suficiente.
Quando se fala de sociedade sustentável não tem como não estabelecer comparações. Hoje o planeta Terra divide-se em dois blocos de países em relação à economia. No hemisfério norte localiza-se a maior parte dos países ricos e no hemisfério sul a maior parte dos mais pobres. Então, é con­veniente trazer para o debate as considerações de Clóvis Cavalcanti (2003) sobre a maior econo­mia do hemisfério norte e do planeta, os Estados Unidos, onde ele a compara com as sociedades indígenas da Amazônia no hemisfério sul ( ver quadro abaixo). Em ter­mos de sustentabilidade am­biental são dois paradigmas extremos e, por conta disto, servem como balizas do que poderia ser o caminho do meio de uma sociedade sustentável.

Comparação de dois paradigmas diferentes de sustentabilidade
Termos de comparação
Índios da Amazônia
Estados Unidos
Visão de mundo
Reverência pela natureza; humildade
Homem senhor e possibilidade da natureza; arrogância
Formação de capital
Quase nenhuma; habilitações e ferramentas toscas
Cumulativa; necessidade de volumes sempre cres­centes de investimento (para manter taxas cons­tantes)
Fontes de energia
Renováveis somente
Combustíveis fósseis (fontes não renováveis); menor proporção de renováveis
Formas de conhecimento
Base na experiência (transmissão oral pelos antigos e pelos pajés)
Ciência moderna (trans­mis­são sob forma escrita – bibliote­cas, meio eletrô­nico)
Fonte de propulsão
Recursos naturais
Progresso técnico
Uso de matéria e ener­gia
Frugalidade; parcimônia termodinâmica
Forte degradação entró­pica; esbanjamento, des­perdício
Principais objetivos econô­micos
Satisfação das necessida­des básicas; bem-estar
comunitá­rio
Crescimento econômico ilimitado; lucro imediato
Tendência de longo prazo
Altamente sustentável
Insustentável
Fonte: CAVALCANTI, 2003.

O primeiro paradigma corresponde, na visão do autor, a uma situação de parcimô­nia e de reverência pela natureza. O segundo conduz, conforme o autor, a um extremo de estresse ambiental e “não contém atributos intrínsecos de respeito pela natureza, é o que se percebe nos padrões de consumo de recursos dos Estados Unidos” (CAVALCANTI, 2003, p. 155).
O estilo de vida dos índios da Amazônia baseia-se em fontes renová­veis de energia, pois os combustíveis fósseis não são usados e a lenha é utilizada de forma sustentável. Não ocorre destruição ambiental visível entre os índios. Além de usa­rem os recursos da natureza com parcimônia, os índios a tratam com reverência e humildade, sentem-se parte dela. No outro ex­tremo, impera a posse e o domínio dos seus recursos para serem transformados em mer­cadorias, que serão vendidas para consumidores, que garantirão, com seu consumo crescente e contínuo, a continuidade do crescimento econômico.
Entre os índios da Amazônia a finalidade única no seu relacionamento com a natureza é a satisfação das necessidades coletivas e individuais; nos EUA, a satisfação das necessidades é um objetivo secundário, o princi­pal é alimentar o processo de acu­mulação de capital. No segundo caso a natureza é tratada com arrogância e utilitarismo; ela é vista essencialmente como um estoque de matérias-primas e a maioria do seus habitantes vive, enquanto maioria urbana, totalmente afastada da natureza, ela tornou-se estranha aos moradores urbanos.
Se tem algo de que Cavalcanti (2003, p. 165) tem clareza é que o desenvolvimento econômico nos moldes dos EUA não é mais uma opção aberta, com amplas possibilidades para todo o planeta. A aceitação da ideia de desenvol­vimento sustentável indica que foi fixado um limite superior para o progresso material, embora ele ainda não esteja muito palpável. Esta aceitação coloca um novo desafio para a humanidade, conforme aponta Cavalcanti (2003, p. 166):
Nosso desafio é como reduzir substancialmente ou eliminar a miséria, sem desrespeitar os limites da capacidade de sustentação da Terra. Po­demos querer empurrar o crescimento além desses limites. Mas devemos ter cons­ciência do fato de que, mais cedo ou mais tarde, teremos que confrontar a nêmesis da natureza.
A deusa Nêmese, venerada por gregos e romanos, representava a justa medida na ordem divina e humana. Todos os que ousassem ultrapassar a própria medida (chamada de hybris – autoafirmação arrogante) eram imediatamente fulminados por Nêmese. O aquecimento global é um dos sinais de que a própria medida pode estar sendo ultrapassada e, aparentemente, a reação da deusa parece estar começando.
O dever dos estudiosos, dos homens e mulheres da ciência, daqui adiante, é explicar como o desenvolvimento poderá tornar-se sustentável. Uma ideia amplamente aceita hoje em dia é a de que o tipo de crescimento econômico que o mundo construiu nos últimos duzentos anos, em particular depois da Segunda Guerra Mundial, não mais se sustenta. Não se propõe aqui, é claro, uma volta à sociedade tribal. Trata-se, antes de tudo, de propor uma ruptura com aquilo que Celso Furtado (1974), chamou de mito do desenvolvimento, que tem a ver com a possibilidade de todos os pobres do mundo desfrutarem das mesmas formas de vida dos povos mais ricos do planeta, com seu consumo ostentatório e, em larga escala, supérfluo. Maria Lúcia Azevedo Leonardi (2003, pp. 204-205) esclarece um pouco mais a questão levantada por Cavalcanti:
Em segundo lugar, graves problemas ambientais – talvez os piores – como o efeito estufa, o buraco na camada de ozônio, o esgotamento dos recursos naturais, a acumulação do lixo tóxico são provocados pelas so­ciedades ri­cas e desenvolvi­das, não pelas pobres. Se o modelo de desen­volvimento do Primeiro Mundo, ar­duamente perseguido pelo Terceiro Mundo, conseguir ser atingido, com níveis de produção e consumo equi­valentes, aí sim a si­tu­ação ambiental se agravará, mesmo se a população parar de crescer. Atu­almente, menos de um quarto da população mundial consome 80% dos bens e mercadorias produzidos pelo homem (Martine, 1993: 25). A tragédia do desenvolvimento explica a “agonia planetária” (conceito criado por Morin & Kern, 1993: 73). Ou, como já foi colocado há tempo, o desenvol­vimento necessita criar o subdesenvolvimento. É seu componente antitético.
Referências
CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez Editora; Recife: Fundação Joaquim Na­buco, 2003.
______. Sustentabilidade da economia: paradigmas alternativos de realização eco­nômica. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez Editora; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003.
MARTINE, George (org.). População meio ambiente e desenvolvimento. Campi­nas: Editora da UNICAMP, 1993.
LEONARDI, Maria Lúcia Azevedo. A sociedade global e a questão ambiental. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez Editora; Recife: Fundação Joaquim Na­buco, 2003.
FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1974.
MORIN, Edgar & KERN, Anne Brigitte. Terre-Patrie. Paris: Seuil, 1993.


Um comentário:

  1. Enquanto que a acumulação de capital e o lucro for o foco da humanidade é impossível atingir a plena defesa do meio ambiente sustentável. Parabéns pelo texto professor Zildo.. Abraço

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